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Quem foi o primeiro peregrino do Caminho de Santiago?

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Estátua de Alfonso II em Santiago
Estátua de Alfonso II em Santiago Carlos Folgoso

Embora a tradição diga que foi Alfonso II, os peritos avisam que não se pode provar porque não há documentação

23 dic 2022 . Actualizado a las 12:33 h.

Quase 450.000 peregrinos. É o número de pessoas que pediram a Compostela neste 2022. Embora hoje seja habitual ver grupos de pessoas com mochila, botas e bastões que seguem as setas amarelas, a rota jacobeia nem sempre foi tão popular. Sabe-se que o fenómeno da peregrinação à catedral surgiu na Idade Média, quando não existia um itinerário definido por marcos e vieiras. Como dizia Antonio Machado, o caminho faz-se ao andar. E foram os próprios peregrinos quem definiram as rotas ao passarem. Mas, quem foi o primeiro?

A teoria mais espalhada afirma que foi o monarca Alfonso II. «A tradição conta que o bispo Teodomiro informou o rei que de que tinha sido encontrado o corpo de Santiago e o rei veio em peregrinação no ano 820 aproximadamente, tornando-se o primeiro peregrino», diz José Miguel Andrade, especialista do Caminho e professor de História Medieval na Universidade de Santiago. Daí se considerar que a rota que parte de Oviedo, onde se encontrava a residência real, seja o Caminho Primitivo. «A tradição diz isso, mas não há nenhuma prova documental que o confirme. Se foi o primeiro peregrino ou não é completamente impossível de saber", avisa o investigador.

«É uma história que foi escrita dois séculos e meio após o acontecimento. Aparece em crónicas e textos de Compostela do século XI. Em função disso, não sabemos nada. Não sabemos sequer se Alfonso II foi alguma vez a Compostela», acrescenta Adeline Rucquoi, membro do Comité de Peritos do Caminho de Santiago.

Outra das questões que debatem os investigadores está relacionada com esse suposto Caminho Primitivo. «Admitindo que foi mesmo até Compostela, não sabemos onde estava nessa altura. Portanto, se Alfonso II foi a Santiago, ninguém diz que saiu de Oviedo», conta Rucquoi. «Os reis naquela época andavam continuamente de um lado para o outro. Podia estar em Sarria, em Portomarín ou perto de Compostela», explica Andrade.

Então, porque razão esta teoria é a mais espalhada? «A primeira referência documental que fala da igreja de Santiago é uma doação do próprio Alfonso II, mas isso não certifica que tenha sido o primeiro peregrino. Podemos supô-lo, mas não há forma de verificar que tenha sido ele», expõe Andrade.

Adeline Rucquoi compara a situação com a hipótese que fala de Carlos Magno como criador do Caminho. Um suposto que aparece no Códice Calixtino, publicado no século XII, três séculos depois da morte do imperador. «Associava-se o descobrimento à monarquia para dar-lhe prestígio. É algo normal», explica.

Primeira peregrinação documentada

Ponto de partida do Caminho de Le Puy, na França, que segue o itinerário feito pelo bispo da cidade em 951
Ponto de partida do Caminho de Le Puy, na França, que segue o itinerário feito pelo bispo da cidade em 951 CEDIDA POR MAISON DE LA FRANCE

«O primeiro peregrino do qual temos rasto documental é um peregrino alemão que passou por Compostela e é contado por ele próprio no ano 930, quando regressa à Alemanha. Diz que Santiago lhe curou a cegueira. Este é o primeiro do qual há menção nas crónicas», conta Rucquoi.

Quanto ao nome, ambos os peritos concordam no de Gotescalco. «O primeiro peregrino conhecido que vem de fora da península Ibérica é um bispo de Le Puy, em França, que aparece no ano 951. Ao vir de França para Compostela pára num mosteiro de La Rioja e pede a cópia de um manuscrito que não tinha na sua diocese. Os monges do lugar deixaram uma anotação na qual indicam que, a caminho de Santiago, o bispo lhes tinha encomendado a cópia. Por isso está documentado», relata Andrade.

Existe de facto uma rota jacobeia chamada Caminho de Le Puy que segue o itinerário realizado pelo bispo. No entanto, Rucquoi avisa que se trata de um percurso criado séculos depois: «Nunca teria atravessado o maciço central de França em linha reta. Na Idade Média não havia mapas e não se ida de um lado a outro em linha reta. O mesmo aconteceu nas Astúrias com o Caminho Primitivo. Resgatou-se a história de Alfonso II e criou-se um caminho a direito entre Oviedo e Santiago».

«Há muita inflação informativa sobre o Caminho de Santiago. Do ponto de vista histórico há muito para dizer ainda. Há muita informação baseada em lendas, em a prioris e em ideias preconcebidas que nem sempre estão documentadas historicamente. Essa é a reflexão que convém fazer», avisa José Miguel Andrade.

Sobre a possibilidade real de Alfonso II ter sido o primeiro peregrino, ambos os peritos concordam em assinalar que não se pode nem confirmar nem desmentir. «Não temos provas. Não quer dizer que assim não fora. Simplesmente não se pode verificar», conclui Rucquoi.